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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O Caminho: uma compreensão fenomenológica-existencial


Tenho uma tarefa.
Posterguei um pouco para realizá-la, não porque estava com preguiça, nem tão pouco porque não queria fazê-la, pelo contrário, só não sabia direito como.
Mas peguei ‘uma’certa estrada e sinto que nela devo seguir; escolho seguir.
Ei-la, a tarefa e a estrada...
Assisti ao filme The way – O caminho –, meu próximo passo é descrever o que compreendi, o que entendi, enfim, analisar o filme. Tarefa nada fácil para um iminente psicólogo, que pouco gosta de analisar coisas... Em todo caso, aí vamos.
Certo homem, assim como muitos outros - talvez assim como eu - médico do olhos[1], erigido pelo positivismo, antiga escola das exatidões, perde seu único filho, que prestes a seguir uma vida muito similar a de seu pai, abandona seu doutorado perto do fim e resolve tomar seu próprio rumo; o rumo de sua própria vida, e viajar pelo mundo.
O pai e o filho aparentam possuir um relacionamento truncado, pelo menos a partir desse momento de desistência da carreira que já se estendia... O pai chega a se referir às ações do filho, por exemplo, a de não possuir um celular, como algo errado, estranho. Diz ele que seu filho vive em um mundo próprio, mostrando certa insatisfação e discordância com as escolhas feitas por ele.
Em determinado momento, recebe a tumbal ligação de um determinado sujeito na França, dizendo que seu filho havia morrido em um trágico acidente no primeiro dia de viagem do Caminho de Santiago de Compostela.
O pai, que nem sabia onde ficava o tal caminho, parte ao encontro do filho, com a determinada mórbida tarefa de trazer seu corpo de volta para casa. Entretanto, o pai se perde em sua dor, perde seu chão, perde o caminho.
Crema o corpo e parte em busca de finalizar a tarefa interrompida ao primeiro dia. Junta as cinzas e coloca-as na mochila de seu antigo dono, decidido a percorrer o caminho, para poder realizar a tarefa que seu filho, seu acompanhante, dono da mochila e causa única das cinzas, havia começado.
Assim, o exato pai, certo de que haveria de cumprir a tarefa em memória de seu único filho, mergulha em uma jornada própria e segue até Compostela e mais além, deixando em cada paragem, em cada fotografia, em cada lembrança, punhados das cinzas de causa única.
Encontra pessoas, tão ou mais perdidas que ele; tão ou mais sofridas que ele. Mesmo assim, partem juntas para o mesmo propósito: terminar o caminho, chegar ao final dele.
Durante toda a trajetória, todos que passam lhes desejamBom caminho, e eles desejam de volta.
O falastrão barrigudo, a fumante inveterada e o travado escritor, formam junto do pai de um só filho, em luto e sem caminho, o quarteto improvável que nos narra a história do encotrar-se a si mesmo, percorrendo o longo caminho que os pés reclamam.
Depois de curvas, de estalagens estrambólicas, de camas gostosas, de camas péssimas, de peripécias, de dores, de sorrisos, de choro, de brigas, de socos... É quase palpável o desvelamento que cada um a sua maneira vai vivendo, vai se permitindo viver.
O pai, de cara fechada quase todo o trajeto, vai começando a sorrir e a entender que o caminho do filho não era assim tão ruim, tão estranho... A cada carimbo do passaporte, o iminente fim da jornada mostrava-se certo. Pelo menos os aproximados 800 quilômetros, distância metrada do caminho.
Porém, como em muitas vezes, como em muitos casos, diferente do mundo externo, o mundo de dentro não apresenta contas, distâncias, metragens, quilômetros certos. Então o pai, junto do filho e dos viajantes, metaforicamente, começa a entrar em contato com o que de mais especial possui sua profissão: Ele começa a enxergar a alma.
Caído em seu próprio fojo, o exato perde-se na inexatidão; vislumbra a si próprio e parece não gostar do que vê... Mas como vocês sabem, dizem que o caminho opera milagres, só não sei dizer até agora qual deles: O caminho de Santiago de Compostela ou o caminho dos viajantes, que entendi ser o caminho dos seres, o caminho de si; apesar de, também ter podido entender, que o primeiro é o instrumento para o segundo acontecer, e o segundo o meio que conhecemos para o primeiro haver.
Afinal não há um caminho, somos o caminho. E enquanto sendo, somos constituintes de nosso caminho, tal qual um cartógrafo que desenha as peculiaridades dos terrenos pelos quais passa.
Ele os sente, fecha os olhos, respira fundo e desenha não só o terreno, os acidentes do terreno - pois este não existe apriori, fora da gente, fora da sensação da alma - mas, sim, o que sentiu ao passar pelos caminhos que percorreu, pelos seus próprios caminhos... ninguém faz o caminho senão por si mesmo!
O caminho foi o meio existente para o processo de elaboração da dor de nossos companheiros de viagem, foi constituído e constituinte. A dor foi – e é -a companheira inseparável de todos os momentos, é aquilo, afinal, que temos de mais próprio. A crise, tal qual no ideograma japonês, foi oportunidade, e eles foram protagonistas dessa estória.
Entendi junto deles, do caminho e dos peregrinos do caminho, que se não pudermos pensar nesse processo, que são eles e deles próprios, a viagem pouco importará, pois pouco importarão os viajantes, pouco importará o caminho, ele não será deles, ele não será o nosso, ele não será de ninguém... E o ninguém é o esquecido, o ex-que-cente, que não pode mais sentir por não mais existir; constituir.
O caminho impróprio não permitiu nossos aventureiros de chegarem às encruzilhadas que desalojam e que não são senão, as oportunidades de escolha, de projeto, de destino. Oportunidade de seguir por si e pelo caminho deles próprios – pelo nosso caminho, por nós - após terem podido deliberar com seus próprios demônios, com seus próprios anjos, consigo-mesmos; conosco.
O pai chega ao fim dizendo que veio para uma tarefa, aquela de levar de volta o corpo, entretanto, olha para a lembrança vívida de seu filho e diz que voltará com nada. Seu filho lhe olha de volta e enxerga, mais uma vez, o que o pai não ainda podia, e diz que ele voltara, sim, com alguma coisa.
A estrada chega ao fim, mais o pai não chega ao fim da estrada, e continua, assim como eu tentei fazer junto dele e de vocês, caros leitores... Sinto agora que já pude compreender qual dos caminhos percorrer para operar os milagres que procuro.
Sinto, também, que a dúvida que lhes apresentei ao começo de meu relato, em como fazer o que aqui fiz, está sendo o próprio caminho que escolhi para estar nesse momento co-migo, pois, comecei a entender que buscamos de maneira geral, as verdades para nos assegurarmos do caminho a percorrer; eu busco a verdade para o asseguramento, tal qual o pai, tal qual o barrigudo, tal qual a inveterada, tal qual o travado, tal qual o filho, todos nós, geralmente, as buscamos fora... Ou mesmo dentro.
Mas elas, as verdades, são afirmações limitadas, ignorantes, pois ao afirmarmos, desafirmamos algo, assim, não há possibilidade de elaborarmos uma afirmação que contemple todas as verdades.
São ignorantes, porque, ao não abarcar todas as possibilidades, as afirmações ignoram; nós ignoramos, somos ignorados.O caminho continua, desta maneira, cartografado, vivido, hsitoricizado, herdado, caminhado...
Lá?
Não, lá não! Aqui!
Poderíamos tentar co-viver com nossas compreensões, lembrando que geraremos afirmações através delas; poderíamos tentar co-viver com as compreensões, dúvidas e reflexões do caminho que já percorremos, que estamos percorrendo, que aspiramos percorrer.Deixemosas afirmações, necessárias e inexoráveis ao ser, para os momentos de pouca inspiração. Pelo menos assim tentemos, assim eu tento, assim tentei.
Por fim, a dúvida, da qual já me alonguei em dizer, seja do lugar geográfico do Caminho; seja a dúvida da morte; do por que o filho ser do jeito que era; do que fazer agora; de qual caminho percorrer. Seja por duvidar de si ao achar ter visto o amado filho, mesmo após sua morte; seja sobre continuar ou não continuar o percurso, seja sobre chegar e não saber para onde ir depois; seja ao começar a compreender que só terminamos um caminho quando retornamos a nós-mesmos.
Essa dúvida – essas dúvidas - foi corporificada e materializada pela pergunta que o dono do último carimbo fez: Qual o motivo de terem feito a peregrinação, a viagem, o caminho?
Não ter uma resposta imediata, compreendi, tratou-se do singular momento de re-encontro entre o pai e ele mesmo, que pôde, então, aceitar o filho. Restava nesse momento da narrativa, continuar o caminho com suas escolhas.
A dúvida, àquela velha senhora que tanto bem-tratei nesse relato, moveu os peregrinos. A pergunta os trouxe de volta. Uma era interna, a outra de fora, mas as duas falavam sobre a mesma coisa.
O pai, que já podia responder às suas próprias perguntas, parou de duvidar de si ao fim do trajeto... Não pela certeza, mas, também, por abraçar as dúvidas. Afinal, ‘foi caminhando que se fez o caminho’[2].
A pergunta e a dúvida nos alucinam; a certeza e a afirmação nos ancoram. Ambas representam as tonalidades afetivas de nosso cuidar de nós mesmos, de nosso cuidado com a vida, de nosso seguir em frente com ela.
Assim cartografemos, sintamos, continuemos,afirmemos; existiremos... Se não no dia a dia, pelo menos no dia a dia de nosso trabalho, da profissão de psicólogos, momento em que podemos nos dar o privilegiado beneficio da dúvida, o momento da incerteza, a nova compreensão e a bem vinda companheira surpresa, principalmente para o outro, que sabe de si e talvez só precise de um guia para aventurar os caminhos de sua própria estrada.
Aos pais e aos filhos. Aos filhos dos filhos, aos filhos do pai, aos pais dos pais... Àqueles pais que possuem um relacionamento com seus filhos, similar ao descrito e narrado pelo filme, e, também, aos filhos que possuem parecido relacionamento com seus pais.
Assim como eu...
Talvez assim como você...

Àqueles que tão pouco são psicólogos, mas são – estão sendo – o que podem ser, o que escolhem ser. Profissionais da Saúde ou não.
A nós, a vocês, a eles... A qualquer um que já se defrontou consigo mesmo em uma encruzilhada; e, também, com uma encruzilhada em sua estrada:

Bom caminho!

Texto escrito por Ararê Dias Calia;
Terapeuta Reikiano, tel: (11) 98183-0139;   
E-mail: arare.d.calia@gmail.com
Formando em psicologia na turma de 2013.



[1] As palavras em itálico estão assim dispostas por representarem falas diretas do filme.
[2] Referência à música dos Titãs: Enquanto Houver Sol.
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