Tenho uma tarefa.
Posterguei um pouco para realizá-la,
não porque estava com preguiça, nem tão pouco porque não queria fazê-la, pelo
contrário, só não sabia direito como.
Mas peguei ‘uma’certa
estrada e sinto que nela devo seguir; escolho seguir.
Ei-la, a tarefa e a
estrada...
Assisti ao filme The way –
O caminho –, meu próximo passo é descrever o que compreendi, o que entendi,
enfim, analisar o filme. Tarefa nada fácil para um iminente psicólogo, que
pouco gosta de analisar coisas... Em todo caso, aí vamos.
Certo homem, assim como
muitos outros - talvez assim como eu - médico
do olhos,
erigido pelo positivismo, antiga escola das exatidões, perde seu único filho,
que prestes a seguir uma vida muito similar a de seu pai, abandona seu
doutorado perto do fim e resolve tomar seu próprio rumo; o rumo de sua própria
vida, e viajar pelo mundo.
O pai e o filho aparentam
possuir um relacionamento truncado, pelo menos a partir desse momento de
desistência da carreira que já se estendia... O pai chega a se referir às ações
do filho, por exemplo, a de não possuir um celular, como algo errado, estranho.
Diz ele que seu filho vive em um mundo
próprio, mostrando certa insatisfação e discordância com as escolhas feitas
por ele.
Em determinado momento,
recebe a tumbal ligação de um determinado sujeito na França, dizendo que seu
filho havia morrido em um trágico acidente no primeiro dia de viagem do Caminho
de Santiago de Compostela.
O pai, que nem sabia onde
ficava o tal caminho, parte ao encontro do filho, com a determinada mórbida
tarefa de trazer seu corpo de volta para casa. Entretanto, o pai se perde em
sua dor, perde seu chão, perde o caminho.
Crema o corpo e parte em
busca de finalizar a tarefa interrompida ao primeiro dia. Junta as cinzas e
coloca-as na mochila de seu antigo dono, decidido a percorrer o caminho, para
poder realizar a tarefa que seu filho, seu acompanhante, dono da mochila e
causa única das cinzas, havia começado.
Assim, o exato pai, certo
de que haveria de cumprir a tarefa em memória de seu único filho, mergulha em
uma jornada própria e segue até Compostela e mais além, deixando em cada
paragem, em cada fotografia, em cada lembrança, punhados das cinzas de causa
única.
Encontra pessoas, tão ou
mais perdidas que ele; tão ou mais sofridas que ele. Mesmo assim, partem juntas para o mesmo propósito: terminar o
caminho, chegar ao final dele.
Durante toda a trajetória,
todos que passam lhes desejamBom caminho,
e eles desejam de volta.
O falastrão barrigudo, a
fumante inveterada e o travado escritor, formam junto do pai de um só filho, em
luto e sem caminho, o quarteto improvável que nos narra a história do
encotrar-se a si mesmo, percorrendo o longo caminho que os pés reclamam.
Depois de curvas, de
estalagens estrambólicas, de camas gostosas, de camas péssimas, de peripécias,
de dores, de sorrisos, de choro, de brigas, de socos... É quase palpável o
desvelamento que cada um a sua maneira vai vivendo, vai se permitindo viver.
O pai, de cara fechada
quase todo o trajeto, vai começando a sorrir e a entender que o caminho do
filho não era assim tão ruim, tão estranho... A cada carimbo do passaporte, o
iminente fim da jornada mostrava-se certo. Pelo menos os aproximados 800
quilômetros, distância metrada do caminho.
Porém, como em muitas
vezes, como em muitos casos, diferente do mundo externo, o mundo de dentro não
apresenta contas, distâncias, metragens, quilômetros certos. Então o pai, junto
do filho e dos viajantes, metaforicamente, começa a entrar em contato com o que
de mais especial possui sua profissão: Ele começa a enxergar a alma.
Caído em seu próprio fojo, o
exato perde-se na inexatidão; vislumbra a si próprio e parece não gostar do que
vê... Mas como vocês sabem, dizem que o caminho opera milagres, só não sei
dizer até agora qual deles: O caminho de Santiago de Compostela ou o caminho
dos viajantes, que entendi ser o caminho dos seres, o caminho de si; apesar de,
também ter podido entender, que o primeiro é o instrumento para o segundo
acontecer, e o segundo o meio que conhecemos para o primeiro haver.
Afinal não há um caminho,
somos o caminho. E enquanto sendo, somos constituintes de nosso caminho, tal
qual um cartógrafo que desenha as peculiaridades dos terrenos pelos quais
passa.
Ele os sente, fecha os
olhos, respira fundo e desenha não só o terreno, os acidentes do terreno - pois
este não existe apriori, fora da gente, fora da sensação da alma - mas, sim, o
que sentiu ao passar pelos caminhos que percorreu, pelos seus próprios
caminhos... ninguém faz o caminho senão
por si mesmo!
O caminho foi o meio
existente para o processo de elaboração da dor de nossos companheiros de
viagem, foi constituído e constituinte. A dor foi – e é -a companheira
inseparável de todos os momentos, é aquilo, afinal, que temos de mais próprio.
A crise, tal qual no ideograma japonês, foi oportunidade, e eles foram
protagonistas dessa estória.
Entendi junto deles, do
caminho e dos peregrinos do caminho,
que se não pudermos pensar nesse processo, que são eles e deles próprios, a
viagem pouco importará, pois pouco importarão os viajantes, pouco importará o
caminho, ele não será deles, ele não será o nosso, ele não será de ninguém... E
o ninguém é o esquecido, o ex-que-cente, que não pode mais sentir por não mais
existir; constituir.
O caminho impróprio não
permitiu nossos aventureiros de chegarem às encruzilhadas que desalojam e que
não são senão, as oportunidades de escolha, de projeto, de destino.
Oportunidade de seguir por si e pelo caminho deles próprios – pelo nosso
caminho, por nós - após terem podido deliberar com seus próprios demônios, com
seus próprios anjos, consigo-mesmos; conosco.
O pai chega ao fim dizendo
que veio para uma tarefa, aquela de levar de volta o corpo, entretanto, olha
para a lembrança vívida de seu filho e diz que voltará com nada. Seu filho lhe
olha de volta e enxerga, mais uma vez, o que o pai não ainda podia, e diz que
ele voltara, sim, com alguma coisa.
A estrada chega ao fim,
mais o pai não chega ao fim da estrada, e continua, assim como eu tentei fazer
junto dele e de vocês, caros leitores... Sinto agora que já pude compreender
qual dos caminhos percorrer para operar os milagres que procuro.
Sinto, também, que a dúvida
que lhes apresentei ao começo de meu relato, em como fazer o que aqui fiz, está
sendo o próprio caminho que escolhi para estar nesse momento co-migo, pois,
comecei a entender que buscamos de maneira geral, as verdades para nos assegurarmos
do caminho a percorrer; eu busco a verdade para o asseguramento, tal qual o
pai, tal qual o barrigudo, tal qual a inveterada, tal qual o travado, tal qual
o filho, todos nós, geralmente, as buscamos fora... Ou mesmo dentro.
Mas elas, as verdades, são
afirmações limitadas, ignorantes, pois ao afirmarmos, desafirmamos algo, assim,
não há possibilidade de elaborarmos uma afirmação que contemple todas as
verdades.
São ignorantes, porque, ao
não abarcar todas as possibilidades, as afirmações ignoram; nós ignoramos,
somos ignorados.O caminho continua, desta maneira, cartografado, vivido,
hsitoricizado, herdado, caminhado...
Lá?
Não, lá não! Aqui!
Poderíamos tentar co-viver
com nossas compreensões, lembrando que geraremos afirmações através delas; poderíamos
tentar co-viver com as compreensões, dúvidas e reflexões do caminho que já
percorremos, que estamos percorrendo, que aspiramos percorrer.Deixemosas
afirmações, necessárias e inexoráveis ao ser, para os momentos de pouca
inspiração. Pelo menos assim tentemos, assim eu tento, assim tentei.
Por fim, a dúvida, da qual
já me alonguei em dizer, seja do lugar geográfico do Caminho; seja a dúvida da
morte; do por que o filho ser do jeito que era; do que fazer agora; de qual
caminho percorrer. Seja por duvidar de si ao achar ter visto o amado filho,
mesmo após sua morte; seja sobre continuar ou não continuar o percurso, seja
sobre chegar e não saber para onde ir depois; seja ao começar a compreender que
só terminamos um caminho quando retornamos a nós-mesmos.
Essa dúvida – essas dúvidas
- foi corporificada e materializada pela pergunta que o dono do último carimbo
fez: Qual o motivo de terem feito a
peregrinação, a viagem, o caminho?
Não ter uma resposta
imediata, compreendi, tratou-se do singular momento de re-encontro entre o pai
e ele mesmo, que pôde, então, aceitar o filho. Restava nesse momento da
narrativa, continuar o caminho com suas escolhas.
A dúvida, àquela velha
senhora que tanto bem-tratei nesse relato, moveu os peregrinos. A pergunta os
trouxe de volta. Uma era interna, a outra de fora, mas as duas falavam sobre a
mesma coisa.
O pai, que já podia
responder às suas próprias perguntas, parou de duvidar de si ao fim do
trajeto... Não pela certeza, mas, também, por abraçar as dúvidas. Afinal, ‘foi
caminhando que se fez o caminho’.
A pergunta e a dúvida nos
alucinam; a certeza e a afirmação nos ancoram. Ambas representam as tonalidades
afetivas de nosso cuidar de nós mesmos, de nosso cuidado com a vida, de nosso
seguir em frente com ela.
Assim cartografemos,
sintamos, continuemos,afirmemos; existiremos... Se não no dia a dia, pelo menos
no dia a dia de nosso trabalho, da profissão de psicólogos, momento em que
podemos nos dar o privilegiado beneficio da dúvida, o momento da incerteza, a
nova compreensão e a bem vinda companheira surpresa, principalmente para o
outro, que sabe de si e talvez só precise de um guia para aventurar os caminhos de sua própria estrada.
Aos pais e aos filhos. Aos
filhos dos filhos, aos filhos do pai, aos pais dos
pais... Àqueles pais que possuem um relacionamento com seus filhos, similar ao
descrito e narrado pelo filme, e, também, aos filhos que possuem parecido
relacionamento com seus pais.
Assim como eu...
Talvez assim como você...
Àqueles que tão pouco são
psicólogos, mas são – estão sendo – o que podem ser, o que escolhem ser.
Profissionais da Saúde ou não.
A nós, a vocês, a eles... A
qualquer um que já se defrontou consigo mesmo em uma encruzilhada; e, também,
com uma encruzilhada em sua estrada:
Bom caminho!
Texto escrito por Ararê Dias Calia;
Terapeuta Reikiano, tel: (11) 98183-0139;
E-mail: arare.d.calia@gmail.com
Formando em psicologia na turma de 2013.